domingo, 18 de dezembro de 2011

''Ele fixaria em Deus aquele olhar verde-esmeralda com uma
leve poeira de ouro no fundo. E não obedeceria porque gato
não obedece. Quando a ordem coincide com sua vontade,
ele atende mas sem a humildade do cachorro, o gato não é
humilde, ele traz viva a memória da liberdade sem coleira.
Despreza o poder porque despreza a servidão. Nem servo
de Deus. Nem servo do Diabo.

Lembro agora daquela história que ouvi na infância e
acreditei porque na infância a gente só acredita. Mais tarde, conhecendo 
melhor o gato é que descobri que jamais ele teria esse comportamento, 
questão de caráter. Dizia a história que Deus pediu água ao cachorro que lavou lindamente o copo e com sorrisos foi levá-lo ao Senhor. Pedido igual foi
feito ao gato e o que ele fez? Escolheu um copo todo rachado,
fez pipi dentro e dando gargalhadas entregou o copo na mão
divina. Conheço bem o gato e sei que ele jamais se comportaria conforme aquela antiga história. 

O cachorro, sim, bem-humorado faria tudo o que fez ao passo que o gato ouviria
a ordem divina mas continuaria calmamente deitado na sua almofada, apenas olhando. Quando se cansasse de olhar, recolheria as patas no calor do peito assim como o chinês
antigo recolhia as mãos nas mangas do quimono. Elegante. Calmo. E mergulharia no sono sem sonhos, gato sonha menos do que o cachorro que até dormindo parece mais com
o homem. Outro ponto discutível: dando gargalhadas? Mas gato não dá gargalhadas, é o cachorro que ri abanando o rabo naquele jeito natural de manifestar alegria. 

Os meus cachorros — e tive tantos — chegavam mesmo a rolar de rir,
a boca arreganhada até o último dente. O gato apenas sorri
no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pouco
os olhos como se os ferisse a luz, esse o sorriso do gato. Secreto.
E distante. Nem melhor nem pior do que o cachorro mas diferente. 
Fingido? Não, porque ele nem se dá ao trabalho de fingir. 

Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa palavra
saiu de moda mas deveria voltar porque não existe defini-
ção melhor para um felino. E para certas pessoas que falam
pouco e olham muito. Cavilosidade sugere cuidado, afinal,
cave é aquele recôncavo onde o vinho fica envelhecendo em
silêncio, no escuro. Na cave o gato se esconde solitário, 
porque sabe do perigo das aproximações. Mas o cachorro, esse
se revela e se expõe com inocência, Aqui estou!''

Lygia Fagundes Telles

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